Cronologia Tradicional

Os antigos chineses foram, talvez, o único povo do mundo a não ter um mito universal de criação. Se o tiveram, era tão pouco importante que não fizeram nenhuma menção a sua existência. Somente na época dos Han é que um mito deste gênero virá fazer parte do folclore chinês, sendo importado provavelmente das áreas que haviam sido recentemente conquistadas no sul do território; e ainda assim, será deslocado da mitologia tradicional e não será comentado pelos grandes historiadores da época. (Watson, 1969:11-15 e Campbell, 1999:291-344)

A História chinesa já começa nos seres humanos. Os tempos antigos, primitivos, reminiscências prováveis dos períodos proto-históricos, são aqueles nos quais os chineses recebem os enviados do céu para aprenderem o que precisam para viver (Campbell, 1999:291-300). Esta, com certeza, era uma projeção que os “historiadores” pouco anteriores a Confúcio, já realizavam sobre o seu próprio passado, humanizando os elementos primitivos e lendários que existiriam na suas antigas cronologias, como a do Shu Jing. Este período antigo dividir-se-ia entre a época dos três patriarcas e a época dos Cinco soberanos, que antecederiam a primeira dinastia mítica da China, os Xia.

O período dos três patriarcas é uma construção resultante de fragmentos de documentações diversas e de reproduções iconográficas tardias (Granet, 1979:27-34). Constituiria-se no momento em que, nos primórdios da humanidade chinesa, um enviado de nome Fuxi teria vindo a terra ensinar os seres humanos a caçar, pescar, fazer o calendário, estruturar as instituições sociais e de governo. Teria também deduzido e ensinado os Guas, ou trigramas, utilizados posteriormente no I Jing, através da observação da Natureza. A primeira referência a esta figura lendária aparece nos comentários de Confúcio ao mesmo I Jing. (Wilhelm, 1988:158) Com Fuxi teria vindo sua irmã (ou esposa) Nu Gua, que teria sido a inventora do ferro e da administração e, por fim, Shen Nung, inventor da medicina e da agricultura, o que o destacou, posteriormente, no panteão dos deuses populares (Granet, 1979 e Palmer, 1993:21-33). Estes três primeiros patriarcas teriam corpos e atributos de animais, o que indica que sua fixação teria se dado num estágio de transição da religião chinesa das práticas zoomórficas para o antropozoomorfismo, sendo possivelmente uma sobrevivência xamânica (Ibdem Granet, p.27-34).

Estes três enviados são substituídos pelos Cinco soberanos, dentre os quais se destacam o primeiro, Huang Di, o Imperador Amarelo e os últimos, Yao e Shun (Yutang, 1959: 131-149). O mesmo Shun que entregou o poder nas mãos de Da Yu (o Grande Yu) (idem, 149-154) para que este resolvesse o problema das inundações chinesas (tal como o Noé ocidental, mas que ao invés de construir uma arca, fez barragens, diques e canais, o que torna totalmente humana a questão do “dilúvio” chinês) e que seria o fundador, depois, da Dinastia Xia. Huang Di teria sido um imperador místico, patrono da medicina, da magia, das armas e do poder. Os outros governantes, tal como Yao e Shun, porém, já haviam ganho um ar muito mais humano, e a própria narrativa do Shu Jing reforça isso. O Shi Ji também não deu muita importância à veracidade da mitologia que envolvia Huang Di, tratando-o mais como um modelo.

Existia, porém, na época Han, uma discordância em torno desta cronologia inicial. A primeira linha, tida como ortodoxa, de forte influência confucionista, tendia a só aceitar os personagens indicados nas obras de Confúcio, o que praticamente reduzia a história à presença de Fuxi, Shen-Nung, Huang Di, Yao e Shun como os primeiros governantes antes de Yu. A minimização dos outros soberanos e a não inclusão de Nu Gua nesta linha não eram preocupações destes estudiosos, mais interessados nos aspectos simbólicos e filosóficos das narrativas. Uma segunda linha, originada na obra de Sima Qian, entrevia com clareza existência dos cinco soberanos e aceitava a complementação dos três primeiros patriarcas, somando um número de oito personagens fundamentais. A atitude deste autor de incluir no Shi Ji uma visão completa destes sábios governantes parecia corresponder à crença na escola Wu Xing e nos ciclos dos Cinco elementos, que somados aos três patriarcas (o que formava a base do Gua, um trigrama) completavam o número de oito, tais como os oito Guas do Ba Gua. (Granet, 1979: 92-155)

Controvérsias à parte, a não-ortodoxia do Shi Ji terminou por prevalecer, valendo sua versão. Não devemos esquecer, porém, que estes personagens não eram invenção de Sima Qian, já existindo em outros compêndios históricos.

Após os Cinco soberanos, a realeza Xia teria sido a primeira a receber o Mandato do Céu (Ming Tien), uma investidura gerada pelos deuses e ancestrais para que os sábios administrassem o homem e a terra. O ideograma Wang (rei), composto de três traços horizontais e um vertical, que os corta, corresponde diretamente a esta concepção: que o soberano é alguém encarregado de unir o céu, a terra e o homem. O Mandato se extinguiria quando uma dinastia perdesse suas virtudes (De), o que correspondia a um movimento cíclico, reprodução direta da ordem cósmica e da natureza, inexoravelmente ligado aos processos de decadência e renascimento do universo. Tais concepções, no entanto, são tidas atualmente como uma transposição dos Zhou ao passado, e uma versão histórica mais atual e palpável entende que o objetivo desta proposta ideológica era fomentar a idéia de uma antiguidade perfeita e harmoniosa, justificadora do poder desta dinastia. Aliás, esta, de fato, é que inaugura a prática do Mandato como ritual político (ver o Lunyu, 20).

Os Xia teriam sido substituídos, em sua fase de decadência, pelos Shang (Yin), em torno do século XX-XV a.C. (Shiji, 3) Com uma cultura tecnicamente avançada, os Shang aparecem na História chinesa como os grandes empreendedores do politeísmo antropomórfico (e dos holocaustos humanos), dos carros de guerra e de uma escrita que aparece fartamente representada nos ossos e carapaças oraculares de tartaruga. Uma sucessão de confrontos políticos, intrigas e guerras culminam com a decadência dos mesmos, o que permitiu a ascensão dos Zhou ao poder em torno do século X a.C. Estes fundam um novo sistema político, baseado na divisão feudal da terra, onde um grupo de nobres trocava seu apoio à casa de Zhou por propriedades e bens. Uma nova fase de expansão do território, inaugurada pelo início bem sucedido desta política, colocou os Zhou em contato com os “bárbaros” do norte (que já ameaçavam os Shang), lançando-os num processo interminável de guerras que - num período posterior - forçaram, inclusive, a transferência da capital, sob ameaça de invasão nômade. Assim, o sistema feudal chinês terminou por implodir na disputa pelo poder político e pelos territórios. A época que vai até o século VI a.C. (época de Confúcio) seria conhecida como época das Primaveras e Outonos, contidas nos anais do Chun Qiu e no Zhuo Quan. Neste momento, diversos conflitos e violações das fronteiras entre os reinos e os pequenos Estados que formavam o “império” Zhou forçaram os chineses a reverem suas posições diante do mundo e da sociedade. É o que caracterizou o período das Cem escolas de pensamento, no qual surgiram confucionistas, taoístas, legistas, moístas, entre outras de menor relevância. Esse momento acabou por se ver engolido pelos acontecimentos políticos da época, que numa crescente escalada de violência culminaram com o período dos Estados Combatentes (datado tradicionalmente entre 481-221 a.C.), quando se formaram os sete principais Estados que lutariam pelo poder até a vitória de Qin, em 221 a.C., resultando na unificação de todo o Império em um novo sistema de governo centralizado.

Influenciado pelos legistas, o primeiro auto-proclamado imperador Qin, Qin Shi Huang Di, estabeleceu sua dinastia sob novas bases, concentrando o poder em suas mãos e criando uma administração forte e eficiente, que regulava a vida social e econômica da população. Foi um período de grande desenvolvimento técnico, mas também de perseguição intelectual e política, quando ocorreu, inclusive, uma grande queima de livros tidos como ortodoxos e retrógrados.

Mas seu reinado foi efêmero, tal como sua dinastia: apesar das grandes realizações, como o início da construção da grande muralha para a proteção contra as tribos do Norte, ou mesmo da unificação da escrita, Qin Shi Huang Di não era bem quisto, e após sua morte em 210 a.C., nenhum de seus sucessores conseguiu se manter. Depois de quatro anos de lutas, um ex-camponês e pequeno funcionário de nome Liu Bang fundou aquela que seria realmente a primeira grande dinastia chinesa: os Han.

O período Han foi próspero para a China Antiga, desenvolvendo o comércio, as relações internacionais, expandido as fronteiras e fazendo uma administração mais justa e menos asfixiante que os Qin. Nesta época adota-se o confucionismo como doutrina oficial de governo, apesar de algumas estruturas anteriores serem mantidas. Após um interregno, ocasionado por um golpe articulado por opositores do regime, interessados na restauração dos antigos costumes (o governo de Wang Mang, de 9-22 d.C.), a dinastia Han se restabeleceu e conseguiu governar novamente até o século III, quando se desestruturou por completo, dando margem á uma nova época de fragmentação. No entanto, as bases para a estrutura imperial já haviam sido lançadas e, depois dos Han, as outras grandes dinastias teriam o trabalho de recuperá-las.